sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Um texto para a P.

Um fim que não é um fim. Um fim que é um recomeço. O problema maior é que nós mulheres ficamos muito tempo (demasiado) dedicadas ao sofrimento. Se, por um lado, somos mais fortes e corajosas e decididas do que a maioria deles o é, por outro, temos a capacidade de sofrimento ampliada em nós. Amamos muito e sofremos muito. Ilustro o que afirmei com um exemplo: Eles, quando acabam uma relação, passados dois meses (ou mesmo duas horas) já estão noutra, nós passados dois anos ainda temos lá a cicatriz que sangra ainda de vez em quando. É normal. Somos assim. É essa a nossa matéria: temos uma capacidade enorme de amar e ao mesmo tempo uma capacidade enorme de sofrimento. Por essa razão é que as mulheres caem sempre no erro do amor e os homens não - tal como diz valter hugo mãe. Nós caímos sempre no erro do amor porque temos uma capacidade de acreditar do tamanho de um sol. Enorme e brilhante. Nós acreditamos no amor como um caminho para a felicidade, mas por vezes esquecemo-nos que os caminhos para a felicidade são diversos, sempre muitos. Esse não é o único. O caminho para a felicidade é amarmo-nos. O caminho para a felicidade é não esperarmos muito da felicidade. (ups, esta última não é muito optimista, mas na verdade quanto maior é a ânsia pela felicidade menos a felicidade surge no nosso caminho). O caminho para a felicidade é manter a capacidade de seguir em frente mesmo quando não apetece. Mas não é seguir em frente como os burros, é seguir em frente e para cima ao mesmo tempo. O caminho para a felicidade é não ter medo de cair de novo no erro do amor.
Amo-te P.
Para sempre. Podes sempre contar com os meus erros, pois é deles que tiro as lições que modestamente te posso passar, se quiseres.

domingo, 22 de novembro de 2009

a questão

A vida ainda é uma coisa estranha para mim. Ainda não consigo percebê-la bem. Uns dias acho que já tenho tudo percebido, outros ando totalmente às aranhas. Numa tentativa de a entender melhor, escrevi uma lista com as características da vida e saiu isto:
- a vida é curta;
- a vida só faz sentido com amigos;
- a vida é melhor quando ainda temos os nossos pais connosco;
- a vida passa muito rápido;
- a vida é um puzzle complicado e as peças que supostamente deveriam encaixar bem, nem sempre encaixam - daí as dores de alma;
- a vida é má;
- a vida é boa;
- a vida é tudo o que temos;
- a vida é mais bonita quando se está apaixonado;
- a vida é um desafio muitas vezes sem sentido;
- a vida é uma aventura com sentido;
- a vida dá muito trabalho;
- a vida é uma palavra cujo referente é sempre metafórico - nunca é real.

Fiz a lista, mas nem por isso, fiquei mais esclarecida. Há demasiadas contradições. Ainda mais do que aquelas que existem em mim. Mas como eu sou um produto da vida deduzo que as contradições quando chegam até mim já estão duplicadas, triplicadas, quadriplicadas.

Mas a questão fundamental é como é que se pode aprender a viver melhor. Nessa resposta, as alíneas cruzam-se com as anteriores. Assim, para viver melhor:
- temos de estar sempre no pico da paixão (o que se revela impossível, demasiado cansativo e irrealista);
- temos de estar sempre conscientes que a vida é curta para que aproveitemos cada momento como se fosse o último. O problema é que essa atitude só contribui para nos lembrarmos que vamos morrer - que ninguém sai daqui vivo - o que nos deixa bastante deprimidos e ainda mais confusos;
- temos de entender a vida como uma aventura, um desafio: o busílis da questão é que nem sempre estamos dispostos a ser aventureiros e a correr riscos que nos podem levar a desastres emocionais graves, daqueles em que partimos os ossinhos todos da nossa alma.

Como este é um trabalho que só termina no momento em que se saía daqui para fora (para onde saímos é outra das questões tramadas para a qual ainda não tenho, e desconfio que nunca terei, resposta), vou atribuir-me o direito de ir modificando as minhas perguntas e respostas:)

sábado, 10 de outubro de 2009

a minha irmã aos 12 anos

Hoje é um dia especial, descobri, já depois de ter perdido a minha irmã, há catorze anos, um texto que ela escreveu quando tinha 12 anos, em 1986. Decidi partilhá-lo porque ela também sou eu. E eu sou «como um livro aberto».

A GUERRA À PORTA

Eu sou uma rapariga e o meu nome é Marta.

Tenho uma família maravilhosa: minha mãe é uma mulher activa, alegre, trabalhadora, uma mulher extraordinária . Meu pai é muito [sic], é um homem calado, trabalhador, simpático, mas tem uma cara triste. Mas a minha irmã, é uma pessoa que eu adoro, tem um feitio maravilhoso, a sua maneira de pensar é desenvolvida de mais para as suas 15 primaveras.

Bem agora que já contei como era a minha família, vou falar um pouco de mim.

Como vos tinha dito, chamo-me Marta, tenho 12 anos, ando no Ciclo Preparatório.

Tenho muitos amigos, que me ajudam nas alturas difíceis da minha idade ( idade do armário).

Sou uma rapariga pensativa ao máximo. Adoro o convívio entre a juventude e as pessoas de idade.

Acho que as pessoas não podem pensar só nelas, devem pensar também nas crianças a morrer de fome, nos países em que o céu anda cinzento.

Porque nós não sabemos o que estará à nossa frente, o que nos poderá acontecer.

As pessoas devem olhar para a realidade, para o Sol que dará luz até existir, não pensar só na sua felicidade, na esperança e que sempre haverá Paz.

Paz! O que é isto para as pessoas?

Paz, o que esta palavra tão apagada pela linguagem diária das pessoas, o que quer dizer?

Quer dizer amor, darmos as mãos e uni-las com todas as crianças da Terra; é a amizade entre os homens, a justiça, isto tudo é Paz !

Mas onde está a Paz?

Porque não vemos nós Paz em vez de guerra?

Vamos acabar com as bombas, com a raiva entre os homens, com a frieza das pessoas, mais propriamente com a guerra!

Mas, porquê a guerra? Resolve assuntos importante?

Ou será só para matar tantas e tantas pessoas que sem culpa dos outros que as causam, resolvem eles sozinhos os seus problemas.

Porque eles só pensam em guerra, nas bombas, na crueldade, na violência.

É por isso que eu, uma jovem que não viu a vida lá fora, aconselho a juventude a lutar e vencer pela Paz!

A Paz faz falta à juventude; é mostrar o que é amor e não crueldade, violência, que os leve para uma vida sem esperança, porque para eles o melhor é o roubo, a violência, a droga, o assassínio.

Quanto é tempo pela Paz!

Paz onde andas tu, porque desapareceste assim? Ninguém te viu partir, foste andando lentamente, ou a guerra venceu-te?

Por favor, eu quero perceber! Porque se eles querem a guerra matem-se a eles e não aos outros, não matem crianças, idosos e jovens !

A guerra bateu à porta!

Alguém lhe abriu a porta, pensando que trazia alegria.

Eu e muita gente queremos a Paz, mas a guerra é mais forte.

A guerra vence o amor. Se nós jovens a deixarmos vencer, entrar como se tudo lhe pertencesse, como se tivesse o direito de matar e estragar o mundo que é nosso! Pertence-nos! Mas não vamos ficar a olhar para ela a ver desgraça em cima de desgraças.

Por isso vamos lutar e vencer pela Paz!

Quero só amar que tanta falta faz!

Que é rara a pessoa que passa na rua e vê a Paz!

Só vê é guerra!

Só se vê bombas!

Só se vê ódio!

Só se vê crueldade!

Porquê?

Porque não há Amor neste planeta chamado Terra, onde tantas e tantas pessoas vivem aqui?

Porquê?

Porque não se juntam e formam um mundo cheio de Paz e Harmonia?!

Quando poderemos abrir a janela e ver o Sol a brilhar, o céu azul, as flores com vida, as crianças a sorrir para nós, a brincar com alegria, ver os campos, os prados, as florestas verdes, verdes cor da esperança?!

Esperança, Alegria, Amor, Paz , Harmonia.

Onde vimos onde ouvimos?

Não vimos nem ouvimos, nem em casa nem na rua!

Porque todas as pessoas vêem que sózinhas não conseguem vencer a violência.

É por isso que eu aconselho para todos nos juntarmos e formar um mundo cheio de Amor!

E lutar, lutar até derrotar, essa palavra tão feia, tão feia!

Mas será que a guerra chegará ao nosso país?

Não! Nós todos juntos podemos lutar contra ela, nós todos juntos venceremos.

Porque se ela um dia vier para o nosso país, ela vai destruir a nossa natureza.

Cá ainda tudo é verde, porque ninguém o destruiu, nem vão destruir, se os jovens não

deixarem, mas para isso é preciso LUTAR!

LUTAR pela Paz, essa palavra tão apagada pelas pessoas, porque ninguém vê Amor.

Nos países em que o céu está cinzento só se ouve choros e gritos de crianças, o que é horrível, mas para nós não ouvirmos nem vermos isso, vamo-nos juntar e formar um mundo cheio de Amor!

Se nós não lutarmos não podemos imaginar o nosso futuro , porque ele não vai ser assim, vai ser cinzento e preto, cheio de armas e exércitos onde não vai haver lugar para flores, para sermos felizes!

O mundo está em guerra, ouço os gritos por cada lugar que passo.

As flores quando nascem, logo morrem, não deixando traços.

Porque o mundo está em guerra e o monstro da guerr já começou a destruir a Terra.

Amo a Natureza, o Sol, o Mar,

mas...

Mas tenho medo,

medo, medo que tudo acabe

com uma simples guerra.



MARTA

quarta-feira, 15 de julho de 2009

O pesadelo que podem ser os pormenores e os pormenores que podem ser um pesadelo


Na língua inglesa existe um provérbio cuja tradução para português poderia ser «Deus está nos detalhes» (God is in the details). Ora, eu não posso concordar. A mim, os pormenores arruinam-me profundamente a paciência (é evidente e intencional a aliteração em p, é um pormenor mas estou totalmente consciente dele pois para mal dos meus pecados eu estou atenta aos pormenores). Os detalhes da vida e do trabalho podem ser persistentes e terrivelmente enlouquecedores (não sei se a palavra existe mas também não estou muito preocupada pois esse é apenas um pormenor deste texto), e fazem-nos perder imenso tempo; tempo que poderiamos usar de modos mais produtivos. Se a civilização ocidental não tivesse optado por ignorar o pormenor, hoje muito provavelmente não teriamos a produção em massa com todas as vantagens a ela associadas: os preços mais baixos, o acesso generalizado aos produtos, a multiplicação dos objectos, blá e blá e blá (estou ciente das desvantagens da reprodução em massa mas não é disso que estou agora a falar, por essa razão vou saltar esse lado da questão).

Interessa-me, sim, chamar a atenção para a imensidão de tempo que nós perdemos com a porcaria dos pormenores. Se não fossem os pormenores eu, por exemplo, já teria acabado a minha tese. Assim como eles existem, tenho de gastar horas a tê-los em consideração: a melhorá-los, a limá-los, a alterá-los, a penteá-los e a pontapeá-los.

É também à volta dos pormenores que os simpósios/encontros/cimeiras/conferências mundiais, por exemplo, perdem a ambição primeira de alcançar a paz mundial: perdem-se em pormenores: é mesmo isso. Outra das ocasiões em que os pormenores particulares e minuciosos se tornam inoportunos é quando alguém nos fala de outro alguém, e quando a seguir a uma descrição agradável, tipo: «ela é uma miúda simpática» vem, na maioria das vezes, um MAS que introduz um pormenor desastroso, tipo: «ela é uma miúda simpática, MAS tem imenso mau-hálito». O pormenor estraga tudo e vai contribuir em muito para acabar com a simpatia da simpática da miúda.

Enfim, por tudo isto, e ainda pelo facto da maioria dos meus alunos escrever «promenor» em vez de pormenor, sugiro que em vez de dizer «Deus está nos pormenores», se diga «O diabo está nos pormenores» pois é esse que nos azucrina a paciência e nos impede de avançar, e de fazer sem medo.

Um pormenor: não levem muito a sério aquilo que escrevo...

sexta-feira, 26 de junho de 2009

o que parece às vezes não é

The Sorrows of an American

Estou a ler The Sorrows of an American de Siri Hustvedt e fica aqui um registo de uma entrevista, de 5 de Junho 2009, da escritora à revista Ipsilon: a questão da autoria e da narracção.

Aparentemente, há leitores (ou jornalistas?) que levam tão a sério as coincidências entre a escritora e as suas personagens que às vezes ela tem de explicar que Erik, o narrador e protagonista do seu quarto romance, não é ela. "Ninguém consegue realmente separar, a menos que lhe diga. Inevitavelmente, existe uma espécie de curiosidade mórbida sobre o que é que no livro tem a ver connosco [autores] e o que é que não tem a ver connosco. Se um livro tem uma ressonância emocional e os sentimentos funcionam, as pessoas partem do princípio que aquilo tem de ser real." Siri nunca diria um flaubertiano "Erik c'est moi", portanto? "Não, todas as personagens 'c'est moi'. Não há dúvida de que Erik tem, em parte, a ver comigo. Mas de forma a criar alguém assim, precisamos de sair de nós mesmos, tanto precisamos de sondar o nosso interior. Antes de mais, a sexualidade masculina é diferente da feminina. No livro, Erik tem imensas fantasias sexuais. Tenho tido vários leitores homens. Na Austrália, no final de uma entrevista para a rádio, o jornalista disse-me: 'Isto sou eu. Erik e eu somos iguais'."

Hustvedt refere-se a Erik como "uma espécie de irmão imaginário" (se repararmos bem, é com Inga, a irmã dele, que se parece mais) e diz que, para ela, "um romance é sempre ocupar outra posição, ser outra pessoa". "E sendo outra pessoa, encontro imensa liberdade: se ocuparmos outra posição, ficamos mais livres para explorar certas verdades emocionais."

Fonte: http://ipsilon.publico.pt//livros/texto.aspx?id=233448

segunda-feira, 18 de maio de 2009

hoje sou este farol

a felicidade

Cada vez mais me convenço que a felicidade é uma perturbação mental, para não dizer, uma doença mental ou psíquica grave. Ninguém no seu perfeito juízo e ninguém suficientemente lúcido consegue ser feliz. Simplesmente não é possível. Enquanto doutoranda tenho momentos de desequilíbrio mental mas, infelizmente, nem nesses momentos consegui apanhar a doença da felicidade: deve ser preciso muito mais do que um desequilíbrio. Só mesmo na loucura total se deve conseguir ser feliz.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

A minha irmã

É difícil escrever sobre a minha irmã - a sombra - que faz parte de mim e da qual eu fazia parte, que cresceu comigo mas que me abandonou cedo de mais, ficando para sempre sombra. A minha irmã chamava-me «arco-iris» e eu chamava-lhe «chiquinha». A diferença na escolha das «alcunhas» é reveladora da essência de cada uma de nós: ela um doce, eu mais palerma; principalmente porque a minha irmã não gostava que eu a chamasse de «chiquinha», dizia que a fazia lembrar um macaquinho amestrado. Acho que tinha razão, mas nem sei como nem quando comecei a atribuir-lhe esse «petit nom».
A minha irmã era um doce, uma pessoa muito meiga, muito atenta aos outros e que era acima de tudo minha amiga, acontecesse o que acontecesse: uma sombra - projecção de mim - que me acompanharia para sempre. Mas não, a sombra deixou-me: deixou-me profundamente só, como se não bastasse a dor. Não há culpas, mas há sofrimento. Apesar das diferenças, a minha irmã era eu e eu era a minha irmã. Com a partida da minha irmã, partiu também a minha infância, as recordações dos vinte e cinco anos que vivi com ela. Ela partiu e eu fiquei. Ainda não sei porquê. A minha irmã chamava-me sempre «meu arco-iris» por isso ainda hoje, quando nos dias de sol e sombra, alguém me diz «Olha o arco-iris! Lindo!», o meu coração fica pequenino, como se mais uma vez fosse atravessado pela mais horrível das dores. É pena, porque o arco-iris é de facto lindo, mas para mim ele é só sombra. A sombra da minha irmã que me acompanha e me deixa tão só.
Amo-te chiquinha
arco-iris

sábado, 25 de abril de 2009

25 de Abril de 1974

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo.



Sophia de Mello Breyner Andresen

Obrigada Sophia pela lucidez

As pessoas sensíveis

As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas


O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra


"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão."


Ó vendilhões do templo
Ó constructores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito


Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.



Sophia de Mello Breyner Andresen
(Livro sexto)

A experiência da doença (crónica)


Ultimamente, como alguns já sabem, ando a estudar a experiência da leitura literária e por essa razão comecei também a pensar na experiência da doença. Se a primeira é uma batalha para descrever, a segunda não o é em menor grau.
No entanto, decidi aplicar algum esforço e vou tentar descrevê-la, já que nem preciso de aplicar um inquérito por questionário, nem fazer a revisão da literatura, como é necessário para analisar, academicamente, a experiência da leitura literária. Digamos que a descrição da experiência da doença que a seguir se apresenta é o resultado de uma investigação assumidamente subjectiva com todos os defeitos e qualidades que certamente advêm da natureza deste tipo de pesquisa...

A EXPERIÊNCIA DA DOENÇA

É frequente ouvir quem esteve doente dizer que a seguir a essa fase, fica mais atento aos pormenores, dá mais valor à vida e aprecia a beleza de tudo o que o/a rodeia. Entendo, mas não posso concordar em absoluto.

Entendo porque na maioria dos casos, as pessoas ficam bem depois de terem estado mal e, quando aquilo que é pontual acaba, e a vida recomeça, é mesmo isso que parece ser possível sentir-se: avança-se e o episódio negro da doença fica para trás. Mas tal como disse, não concordo, porque no caso da doença crónica, por exemplo, não há nenhuma revelação - ao estilo de uma epifania - do valor e da beleza da vida; ficando apenas o sentimento de medo: de medo que as dores e a doença nos ataquem mais uma vez e que da próxima vez já não consigamos rejuvenescer com a mesma agilidade e força.

Na experiência da doença, o valor e a beleza da vida ficam simultaneamente ampliados e reduzidos. Ampliam-se quando finalmente podemos calcar o chão com mais vigor, falar com mais energia, passear fora de portas, mas reduzem-se porque a doença quando é crónica não nos deixa apreciar plenamente - mesmo quando estamos menos doentes - os pormenores mais gentis da vida. Claro que há sempre a esperança, mas também há a certeza que a doença é uma crueldade, uma indignidade e uma injustiça.

Compreende-se que quem fica doente aos 60 e recupera, consiga (finalmente) apreciar aquilo que chamam de beleza da vida, mas quem fica doente crónico aos 25 e não morre, fica sempre doente. É quase como estar na praia num dia lindo de Verão e não poder saborear a liberdade e o prazer de um mergulho no mar, onde o corpo se liberta, flutua e não tem peso. Quando a vida (apelidada por alguns como bela) oferece uma doença crónica a uma pessoa que está na flor da idade (sempre achei esta expressão curiosa), vive-se num limbo entre a esperança de melhorar e o pavor de piorar.Para além do mais, a experiência da doença crónica traz uma solidão impenetrável e por vezes envergonhada. Por isso a vida não consegue ser um sonho belo e a praia fica seca, sem azul, sem peixes e sem dourado.

Mais haverá para dizer sobre esta experiência que é também um trabalho sempre em contrução (tipo as obras de Santa Engrácia - outra expressão curiosa): fica a esperança que o consiga fazer por mais algum tempo.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

carta a uma filha

Querida filha,

Escrevo-te hoje, na véspera do dia em que te casarás, para te dizer aquilo que sinto. Estou em casa, naquela que é ainda hoje a tua casa, mas que a partir de amanhã será apenas a casa dos teus pais. A casa está fria e cada vez maior. Quando quase todos à minha volta se queixam de como as suas casas estão cada vez mais pequenas, que nelas já não cabe nem mais um alfinete, na minha (na ainda nossa) casa, é o contrário. Nem mesmo todos os livros do mundo a conseguem encher nem a tornam quente como ela já foi em tempos. Aqui no meio da cidade, tão longe do sítio onde nasci, é cada vez mais difícil respirar, por isso fico em casa, no quarto, naquele quarto que já foi o da tua irmã e que agora é um escritório cheio de papelada e um computador. No entanto, é aqui que me sinto bem; aqui ainda consigo pensar mesmo quando o comboio passa e a gatinha mia forte em jeito de resposta ao longo assobio que nasce na estação lá em baixo. É neste quarto, hoje espaço de arquivo de papéis e de emoções, que faço a despedida de ti. Tem de ser uma despedida lenta que vá crescendo em mim e que eu vou aos poucos dominando. Isto porque, como sabes, detesto despedidas. Provavelmente uma reacção consciente ao dia em que os meus pais foram para Angola e me deixaram ao cuidado da tia, daquela tia que vivia na outra margem. Eles foram e eu fiquei. Tal como tu te vais embora amanhã e eu fico. Lembro-me desse dia como se fosse hoje. Ainda nem estava na escola, ainda nem sabia o alfabeto, mas já um turbilhão de palavras me ocupava a cabeça. Claro que eram palavras de menina, palavras que se alinhavam aos trambolhões na minha cabeça como os puzzles que eu tentava fazer no chão da loja dos avós - «por que se vão embora? Por que não posso ir com vocês? Por que não me levas contigo, mãe? Por que tenho de ficar aqui?» onde à mesa estou proibida de falar e conversar como eu sempre gostei. Eu sempre gostei de conversar e como sabes converso por tudo e por nada, foi com o meu pai que aprendi a fazê-lo. Foi o teu avô quem mo ensinou, no dia em que a minha mãe me pôs de castigo, fechada no quarto da costura, por eu ter partido a terrina da sopa, com a sopa ainda lá dentro. Certamente já ouviste esta história centenas de vezes, mas foi mesmo nesse dia que eu aprendi, sem o saber, claro, o que era a imaginação e a força de dar voltas à vida quando a vida no-las troca. Conseguindo enganar a minha mãe, o meu pai passou aquela tarde comigo, também de castigo, pensava eu, sem perceber porquê, a contar-me histórias: histórias de quando era menino e ia de bicicleta à ribeira nos dias quentes de Verão, histórias de quando acordava de madrugada para ir à padaria do irmão sentir o cheiro do pão quente acabadinho de fazer, histórias e mais histórias. Foi nesse dia que percebi o poder libertador das palavras pois à medida que da boca do meu pai saiam palavras e palavras, as paredes daquele quarto de costura destruíam-se e eu voava dali para fora. Com aquelas palavras, vieram outras e nasceu a minha paixão por tudo aquilo que é composto por palavras: as conversas, as vidas, as memórias e as histórias. Amanhã, quando casares, abres mais um caminho mas, se quiseres e me deixares, eu estarei sempre lá, pronta para conversar quando precisares de mim. Sei que não gostas de telefones por isso te escrevo hoje, mas fica com a certeza que com fios ou sem fios, as tuas palavras (e o teu mundo) farão sempre parte das minhas palavras e do meu mundo.
Mãe

terça-feira, 31 de março de 2009

a idade

a idade é relativa. até aqui nada de novo. para além do mais, a relatividade é das respostas mais fáceis que se pode dar às coisas que nos intrigam. tipo: a felicidade? é relativa; o que é o amor? bem, é relativo. ou seja, às vezes, quando não se sabe o que se dizer, diz-se que é relativo e de um modo geral o outro fica a olhar para nós meio atordoado mas no fundo a concordar que de facto tudo (ou quase tudo) é relativo. mas há coisas e sentimentos para os quais não é possível dar esta resposta vaga e ao mesmo tempo tão peremptória. quando se é jovem, muito jovem, digamos, quando se tem 24 anos, não é relativo ficarmos velhos de um momento para o outro. é um peso que nada tem a ver com relatividade: é um facto indesmentível. não é relativo, é um peso (pesado) ser-se jovem e ter uma doença de velhos que nos faz inevitavelmente viver e logo pensar como velhos. ter uma doença de velhos quando se é jovem, faz olhar a vida e vivê-la de modo muito diferente do que ser jovem e não ter uma doença de velhos. parece uma verdade do mr. jacques de la palisse (ou de la palice, é relativo), mas é acima de tudo um sentimento com o qual se aprende a conviver. e nessa convivência nada há de relativo no sentido em que não há limitações ao sentido desse sentimento. ele é verdadeiro e irrefutável.

segunda-feira, 9 de março de 2009

mais longe

Consciência. Olhar. Dor. Beleza. Eu posso viver tudo isto exactamente no mesmo espaço e tempo em que, a trezentos kms de mim, está alguém que eu amo mais do que todos adormecido artificialmente e que, por algumas horas, não vive como eu vivo. Está algures noutro sítio: a dormir porque assim a colocaram. Estará naquele sono em que não se pensa nada, em que tudo é branco e não se sonha. Está noutra dimensão: longe de mim e até longe dela mesma. Vou esperar ansiosamente que regresse para mim. Até já, mãe.

terça-feira, 3 de março de 2009

acordei a pensar nisto...

Curiosamente, a perfeição partilha algo com a crueldade: ambas se revelam nos pormenores.

segunda-feira, 2 de março de 2009

a língua portuguesa e o algarve

«Razões afins levarão um dia a que, no algarve, como alguém terá o cuidado de escrever, toda a praia que se preze, não é praia mas é beach, qualquer pescador fisherman, tanto faz prezar-se como não, e se de aldeamentos turísticos, em vez de aldeias, se trata, fiquemos sabendo que é mais aceite dizer-se holiday's village, ou village de vacances, ou ferienorte. Chega-se ao cúmulo de não haver nome para loja de modas, porque ela é, numa espécie de português por adopção, boutique, e, necessariamente, fashion shop em inglês, menos necessariamente modes em francês, e francamente modegeschäft em alemão. Uma sapataria apresenta-se como shoes, e não se fala mais nisso. E se o viajante pudesse catar, como quem cata piolhos, nomes de bares e buates, quando chegasse a sines ainda iria nas primeiras letras do alfabeto. Tão desprezado este na lusitana arrumação que do algarve se pode dizer, nestas épocas em que descem os civilizados à barbárie, ser ele a terra do português tal qual se cala.»
Saramago (2008). A Viagem do Elefante: 233-4.

leitura recente

[...] porque a vida ri-se das previsões e põe palavras onde imaginámos silêncios, e súbitos regressos quando pensámos que não voltaríamos a encontrar-nos.

Saramago (2008). A Viagem do Elefante: 34.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

sou muito mais feliz sem telefone

Não entendo e não consigo viver ao ritmo imposto pelos telefones a quem circula no início do século XXI, como é o meu caso e provavelmente o vosso também.
Dizem-me constantemente (procuram mesmo convencer-me) que deveria ter telefone em casa: NÃO QUERO!
Os argumentos com os quais intentam persuadir-me a ter tal invasor em minha casa são vários: a) estarei sempre contactável; b) poderão contactar-me sempre que precisarem; c) é mais barato do que o telemóvel; d) é muito cómodo, e), f) e continuam e continuam.
Pois para mim não serve: o dia em que desliguei o telefone (há já mais de ano) foi o dia em que dei mais um passo na minha liberdade. Sim, porque associar a presença dos telefones, nomeadamente daqueles que são portáteis, à liberdade é uma falácia das maiores. Ninguém é livre com um aparelho que a segue a toda a hora e se por um acaso não o atendemos quando nos tentam contactar, zangam-se connosco e dizem num tom agressivo e perplexo: «telefonei-te hoje de manhã, mas não atendeste!!!». Esta perseguição é horrível e é verdade: estou e sou muito mais feliz sem telefone.
Infelizmente não consegui ainda livrar-me do telemóvel: aquele de quem se diz que nos dá ainda mais liberdade do que os outros (os fixos), mas para mim é o oposto: é como se ele fosse o meu carcereiro - alguém que observa e monitoriza cada um dos meus passos, alguém que não me deixa em paz quando eu decido ignorá-lo, alguém que chega mesmo a penalizar-me por eu não corresponder ao que é esperado, ou seja, estar disponível e contactável a todos os segundos, a todos os minutos, a todas as horas, a todos os dias, a todos os momentos do ano.
Antes dos telemóveis, quem falava sozinho na rua era considerado louco, hoje em dia, é apenas mais um a falar ao telefone.
Antes dos telemóveis, utilizávamos as cabines telefónicas (para as quais hoje se olha como se de dinossauros se tratassem) e fechávamos as suas portas para que não nos ouvissem, tinhamos, aliás, pudor: um pudor que nos permitia preservar a nossa privacidade. Hoje com os telemóveis, todos falam em alto e bom som, sem pudor, sem revervas, e partilham connosco e com o mundo a gripe do filho, o horário de saída do marido, a zanga com a mulher, os desgostos de amor, as doenças miseráveis. Tudo.
Não compreendo este novo mundo e só para concluir, caso ainda não tenham entendido: detesto falar ao telefone e sou muito mais feliz sem telefone. Enviem-me, sim, emails, cartas ou escrevam um comentário neste meu cibermundo.

casa



Como disse V.S. Naipaul, prémio Nóbel da Literatura em 2001, «casa» é o lugar onde o nosso gato está. Concordo totalmente.