sábado, 25 de abril de 2009

25 de Abril de 1974

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo.



Sophia de Mello Breyner Andresen

Obrigada Sophia pela lucidez

As pessoas sensíveis

As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas


O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra


"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão."


Ó vendilhões do templo
Ó constructores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito


Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.



Sophia de Mello Breyner Andresen
(Livro sexto)

A experiência da doença (crónica)


Ultimamente, como alguns já sabem, ando a estudar a experiência da leitura literária e por essa razão comecei também a pensar na experiência da doença. Se a primeira é uma batalha para descrever, a segunda não o é em menor grau.
No entanto, decidi aplicar algum esforço e vou tentar descrevê-la, já que nem preciso de aplicar um inquérito por questionário, nem fazer a revisão da literatura, como é necessário para analisar, academicamente, a experiência da leitura literária. Digamos que a descrição da experiência da doença que a seguir se apresenta é o resultado de uma investigação assumidamente subjectiva com todos os defeitos e qualidades que certamente advêm da natureza deste tipo de pesquisa...

A EXPERIÊNCIA DA DOENÇA

É frequente ouvir quem esteve doente dizer que a seguir a essa fase, fica mais atento aos pormenores, dá mais valor à vida e aprecia a beleza de tudo o que o/a rodeia. Entendo, mas não posso concordar em absoluto.

Entendo porque na maioria dos casos, as pessoas ficam bem depois de terem estado mal e, quando aquilo que é pontual acaba, e a vida recomeça, é mesmo isso que parece ser possível sentir-se: avança-se e o episódio negro da doença fica para trás. Mas tal como disse, não concordo, porque no caso da doença crónica, por exemplo, não há nenhuma revelação - ao estilo de uma epifania - do valor e da beleza da vida; ficando apenas o sentimento de medo: de medo que as dores e a doença nos ataquem mais uma vez e que da próxima vez já não consigamos rejuvenescer com a mesma agilidade e força.

Na experiência da doença, o valor e a beleza da vida ficam simultaneamente ampliados e reduzidos. Ampliam-se quando finalmente podemos calcar o chão com mais vigor, falar com mais energia, passear fora de portas, mas reduzem-se porque a doença quando é crónica não nos deixa apreciar plenamente - mesmo quando estamos menos doentes - os pormenores mais gentis da vida. Claro que há sempre a esperança, mas também há a certeza que a doença é uma crueldade, uma indignidade e uma injustiça.

Compreende-se que quem fica doente aos 60 e recupera, consiga (finalmente) apreciar aquilo que chamam de beleza da vida, mas quem fica doente crónico aos 25 e não morre, fica sempre doente. É quase como estar na praia num dia lindo de Verão e não poder saborear a liberdade e o prazer de um mergulho no mar, onde o corpo se liberta, flutua e não tem peso. Quando a vida (apelidada por alguns como bela) oferece uma doença crónica a uma pessoa que está na flor da idade (sempre achei esta expressão curiosa), vive-se num limbo entre a esperança de melhorar e o pavor de piorar.Para além do mais, a experiência da doença crónica traz uma solidão impenetrável e por vezes envergonhada. Por isso a vida não consegue ser um sonho belo e a praia fica seca, sem azul, sem peixes e sem dourado.

Mais haverá para dizer sobre esta experiência que é também um trabalho sempre em contrução (tipo as obras de Santa Engrácia - outra expressão curiosa): fica a esperança que o consiga fazer por mais algum tempo.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

carta a uma filha

Querida filha,

Escrevo-te hoje, na véspera do dia em que te casarás, para te dizer aquilo que sinto. Estou em casa, naquela que é ainda hoje a tua casa, mas que a partir de amanhã será apenas a casa dos teus pais. A casa está fria e cada vez maior. Quando quase todos à minha volta se queixam de como as suas casas estão cada vez mais pequenas, que nelas já não cabe nem mais um alfinete, na minha (na ainda nossa) casa, é o contrário. Nem mesmo todos os livros do mundo a conseguem encher nem a tornam quente como ela já foi em tempos. Aqui no meio da cidade, tão longe do sítio onde nasci, é cada vez mais difícil respirar, por isso fico em casa, no quarto, naquele quarto que já foi o da tua irmã e que agora é um escritório cheio de papelada e um computador. No entanto, é aqui que me sinto bem; aqui ainda consigo pensar mesmo quando o comboio passa e a gatinha mia forte em jeito de resposta ao longo assobio que nasce na estação lá em baixo. É neste quarto, hoje espaço de arquivo de papéis e de emoções, que faço a despedida de ti. Tem de ser uma despedida lenta que vá crescendo em mim e que eu vou aos poucos dominando. Isto porque, como sabes, detesto despedidas. Provavelmente uma reacção consciente ao dia em que os meus pais foram para Angola e me deixaram ao cuidado da tia, daquela tia que vivia na outra margem. Eles foram e eu fiquei. Tal como tu te vais embora amanhã e eu fico. Lembro-me desse dia como se fosse hoje. Ainda nem estava na escola, ainda nem sabia o alfabeto, mas já um turbilhão de palavras me ocupava a cabeça. Claro que eram palavras de menina, palavras que se alinhavam aos trambolhões na minha cabeça como os puzzles que eu tentava fazer no chão da loja dos avós - «por que se vão embora? Por que não posso ir com vocês? Por que não me levas contigo, mãe? Por que tenho de ficar aqui?» onde à mesa estou proibida de falar e conversar como eu sempre gostei. Eu sempre gostei de conversar e como sabes converso por tudo e por nada, foi com o meu pai que aprendi a fazê-lo. Foi o teu avô quem mo ensinou, no dia em que a minha mãe me pôs de castigo, fechada no quarto da costura, por eu ter partido a terrina da sopa, com a sopa ainda lá dentro. Certamente já ouviste esta história centenas de vezes, mas foi mesmo nesse dia que eu aprendi, sem o saber, claro, o que era a imaginação e a força de dar voltas à vida quando a vida no-las troca. Conseguindo enganar a minha mãe, o meu pai passou aquela tarde comigo, também de castigo, pensava eu, sem perceber porquê, a contar-me histórias: histórias de quando era menino e ia de bicicleta à ribeira nos dias quentes de Verão, histórias de quando acordava de madrugada para ir à padaria do irmão sentir o cheiro do pão quente acabadinho de fazer, histórias e mais histórias. Foi nesse dia que percebi o poder libertador das palavras pois à medida que da boca do meu pai saiam palavras e palavras, as paredes daquele quarto de costura destruíam-se e eu voava dali para fora. Com aquelas palavras, vieram outras e nasceu a minha paixão por tudo aquilo que é composto por palavras: as conversas, as vidas, as memórias e as histórias. Amanhã, quando casares, abres mais um caminho mas, se quiseres e me deixares, eu estarei sempre lá, pronta para conversar quando precisares de mim. Sei que não gostas de telefones por isso te escrevo hoje, mas fica com a certeza que com fios ou sem fios, as tuas palavras (e o teu mundo) farão sempre parte das minhas palavras e do meu mundo.
Mãe