Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo.
Sophia de Mello Breyner Andresen
sábado, 25 de abril de 2009
Obrigada Sophia pela lucidez
As pessoas sensíveis
As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas
O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra
"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão."
Ó vendilhões do templo
Ó constructores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito
Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.
Sophia de Mello Breyner Andresen
(Livro sexto)
As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas
O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
O dinheiro cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra
"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão."
Ó vendilhões do templo
Ó constructores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito
Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.
Sophia de Mello Breyner Andresen
(Livro sexto)
A experiência da doença (crónica)
Ultimamente, como alguns já sabem, ando a estudar a experiência da leitura literária e por essa razão comecei também a pensar na experiência da doença. Se a primeira é uma batalha para descrever, a segunda não o é em menor grau.
No entanto, decidi aplicar algum esforço e vou tentar descrevê-la, já que nem preciso de aplicar um inquérito por questionário, nem fazer a revisão da literatura, como é necessário para analisar, academicamente, a experiência da leitura literária. Digamos que a descrição da experiência da doença que a seguir se apresenta é o resultado de uma investigação assumidamente subjectiva com todos os defeitos e qualidades que certamente advêm da natureza deste tipo de pesquisa...
A EXPERIÊNCIA DA DOENÇA
É frequente ouvir quem esteve doente dizer que a seguir a essa fase, fica mais atento aos pormenores, dá mais valor à vida e aprecia a beleza de tudo o que o/a rodeia. Entendo, mas não posso concordar em absoluto.
Entendo porque na maioria dos casos, as pessoas ficam bem depois de terem estado mal e, quando aquilo que é pontual acaba, e a vida recomeça, é mesmo isso que parece ser possível sentir-se: avança-se e o episódio negro da doença fica para trás. Mas tal como disse, não concordo, porque no caso da doença crónica, por exemplo, não há nenhuma revelação - ao estilo de uma epifania - do valor e da beleza da vida; ficando apenas o sentimento de medo: de medo que as dores e a doença nos ataquem mais uma vez e que da próxima vez já não consigamos rejuvenescer com a mesma agilidade e força.
Na experiência da doença, o valor e a beleza da vida ficam simultaneamente ampliados e reduzidos. Ampliam-se quando finalmente podemos calcar o chão com mais vigor, falar com mais energia, passear fora de portas, mas reduzem-se porque a doença quando é crónica não nos deixa apreciar plenamente - mesmo quando estamos menos doentes - os pormenores mais gentis da vida. Claro que há sempre a esperança, mas também há a certeza que a doença é uma crueldade, uma indignidade e uma injustiça.
Compreende-se que quem fica doente aos 60 e recupera, consiga (finalmente) apreciar aquilo que chamam de beleza da vida, mas quem fica doente crónico aos 25 e não morre, fica sempre doente. É quase como estar na praia num dia lindo de Verão e não poder saborear a liberdade e o prazer de um mergulho no mar, onde o corpo se liberta, flutua e não tem peso. Quando a vida (apelidada por alguns como bela) oferece uma doença crónica a uma pessoa que está na flor da idade (sempre achei esta expressão curiosa), vive-se num limbo entre a esperança de melhorar e o pavor de piorar.Para além do mais, a experiência da doença crónica traz uma solidão impenetrável e por vezes envergonhada. Por isso a vida não consegue ser um sonho belo e a praia fica seca, sem azul, sem peixes e sem dourado.
Mais haverá para dizer sobre esta experiência que é também um trabalho sempre em contrução (tipo as obras de Santa Engrácia - outra expressão curiosa): fica a esperança que o consiga fazer por mais algum tempo.
quarta-feira, 8 de abril de 2009
carta a uma filha
Querida filha,
Escrevo-te hoje, na véspera do dia em que te casarás, para te dizer aquilo que sinto. Estou em casa, naquela que é ainda hoje a tua casa, mas que a partir de amanhã será apenas a casa dos teus pais. A casa está fria e cada vez maior. Quando quase todos à minha volta se queixam de como as suas casas estão cada vez mais pequenas, que nelas já não cabe nem mais um alfinete, na minha (na ainda nossa) casa, é o contrário. Nem mesmo todos os livros do mundo a conseguem encher nem a tornam quente como ela já foi em tempos. Aqui no meio da cidade, tão longe do sítio onde nasci, é cada vez mais difícil respirar, por isso fico em casa, no quarto, naquele quarto que já foi o da tua irmã e que agora é um escritório cheio de papelada e um computador. No entanto, é aqui que me sinto bem; aqui ainda consigo pensar mesmo quando o comboio passa e a gatinha mia forte em jeito de resposta ao longo assobio que nasce na estação lá em baixo. É neste quarto, hoje espaço de arquivo de papéis e de emoções, que faço a despedida de ti. Tem de ser uma despedida lenta que vá crescendo em mim e que eu vou aos poucos dominando. Isto porque, como sabes, detesto despedidas. Provavelmente uma reacção consciente ao dia em que os meus pais foram para Angola e me deixaram ao cuidado da tia, daquela tia que vivia na outra margem. Eles foram e eu fiquei. Tal como tu te vais embora amanhã e eu fico. Lembro-me desse dia como se fosse hoje. Ainda nem estava na escola, ainda nem sabia o alfabeto, mas já um turbilhão de palavras me ocupava a cabeça. Claro que eram palavras de menina, palavras que se alinhavam aos trambolhões na minha cabeça como os puzzles que eu tentava fazer no chão da loja dos avós - «por que se vão embora? Por que não posso ir com vocês? Por que não me levas contigo, mãe? Por que tenho de ficar aqui?» onde à mesa estou proibida de falar e conversar como eu sempre gostei. Eu sempre gostei de conversar e como sabes converso por tudo e por nada, foi com o meu pai que aprendi a fazê-lo. Foi o teu avô quem mo ensinou, no dia em que a minha mãe me pôs de castigo, fechada no quarto da costura, por eu ter partido a terrina da sopa, com a sopa ainda lá dentro. Certamente já ouviste esta história centenas de vezes, mas foi mesmo nesse dia que eu aprendi, sem o saber, claro, o que era a imaginação e a força de dar voltas à vida quando a vida no-las troca. Conseguindo enganar a minha mãe, o meu pai passou aquela tarde comigo, também de castigo, pensava eu, sem perceber porquê, a contar-me histórias: histórias de quando era menino e ia de bicicleta à ribeira nos dias quentes de Verão, histórias de quando acordava de madrugada para ir à padaria do irmão sentir o cheiro do pão quente acabadinho de fazer, histórias e mais histórias. Foi nesse dia que percebi o poder libertador das palavras pois à medida que da boca do meu pai saiam palavras e palavras, as paredes daquele quarto de costura destruíam-se e eu voava dali para fora. Com aquelas palavras, vieram outras e nasceu a minha paixão por tudo aquilo que é composto por palavras: as conversas, as vidas, as memórias e as histórias. Amanhã, quando casares, abres mais um caminho mas, se quiseres e me deixares, eu estarei sempre lá, pronta para conversar quando precisares de mim. Sei que não gostas de telefones por isso te escrevo hoje, mas fica com a certeza que com fios ou sem fios, as tuas palavras (e o teu mundo) farão sempre parte das minhas palavras e do meu mundo.
Mãe
Escrevo-te hoje, na véspera do dia em que te casarás, para te dizer aquilo que sinto. Estou em casa, naquela que é ainda hoje a tua casa, mas que a partir de amanhã será apenas a casa dos teus pais. A casa está fria e cada vez maior. Quando quase todos à minha volta se queixam de como as suas casas estão cada vez mais pequenas, que nelas já não cabe nem mais um alfinete, na minha (na ainda nossa) casa, é o contrário. Nem mesmo todos os livros do mundo a conseguem encher nem a tornam quente como ela já foi em tempos. Aqui no meio da cidade, tão longe do sítio onde nasci, é cada vez mais difícil respirar, por isso fico em casa, no quarto, naquele quarto que já foi o da tua irmã e que agora é um escritório cheio de papelada e um computador. No entanto, é aqui que me sinto bem; aqui ainda consigo pensar mesmo quando o comboio passa e a gatinha mia forte em jeito de resposta ao longo assobio que nasce na estação lá em baixo. É neste quarto, hoje espaço de arquivo de papéis e de emoções, que faço a despedida de ti. Tem de ser uma despedida lenta que vá crescendo em mim e que eu vou aos poucos dominando. Isto porque, como sabes, detesto despedidas. Provavelmente uma reacção consciente ao dia em que os meus pais foram para Angola e me deixaram ao cuidado da tia, daquela tia que vivia na outra margem. Eles foram e eu fiquei. Tal como tu te vais embora amanhã e eu fico. Lembro-me desse dia como se fosse hoje. Ainda nem estava na escola, ainda nem sabia o alfabeto, mas já um turbilhão de palavras me ocupava a cabeça. Claro que eram palavras de menina, palavras que se alinhavam aos trambolhões na minha cabeça como os puzzles que eu tentava fazer no chão da loja dos avós - «por que se vão embora? Por que não posso ir com vocês? Por que não me levas contigo, mãe? Por que tenho de ficar aqui?» onde à mesa estou proibida de falar e conversar como eu sempre gostei. Eu sempre gostei de conversar e como sabes converso por tudo e por nada, foi com o meu pai que aprendi a fazê-lo. Foi o teu avô quem mo ensinou, no dia em que a minha mãe me pôs de castigo, fechada no quarto da costura, por eu ter partido a terrina da sopa, com a sopa ainda lá dentro. Certamente já ouviste esta história centenas de vezes, mas foi mesmo nesse dia que eu aprendi, sem o saber, claro, o que era a imaginação e a força de dar voltas à vida quando a vida no-las troca. Conseguindo enganar a minha mãe, o meu pai passou aquela tarde comigo, também de castigo, pensava eu, sem perceber porquê, a contar-me histórias: histórias de quando era menino e ia de bicicleta à ribeira nos dias quentes de Verão, histórias de quando acordava de madrugada para ir à padaria do irmão sentir o cheiro do pão quente acabadinho de fazer, histórias e mais histórias. Foi nesse dia que percebi o poder libertador das palavras pois à medida que da boca do meu pai saiam palavras e palavras, as paredes daquele quarto de costura destruíam-se e eu voava dali para fora. Com aquelas palavras, vieram outras e nasceu a minha paixão por tudo aquilo que é composto por palavras: as conversas, as vidas, as memórias e as histórias. Amanhã, quando casares, abres mais um caminho mas, se quiseres e me deixares, eu estarei sempre lá, pronta para conversar quando precisares de mim. Sei que não gostas de telefones por isso te escrevo hoje, mas fica com a certeza que com fios ou sem fios, as tuas palavras (e o teu mundo) farão sempre parte das minhas palavras e do meu mundo.
Mãe
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