terça-feira, 13 de abril de 2010

excerto de um dos livros mais maravilhosos que alguma vez li

Sentado nos degraus que davam para o pátio das traseiras e para a oficina, vendo como o meu pai trabalhava, dediquei alguns minutos quase exclusivamente a respirar, pois ficara muito débil. Do mesmo modo que estava consciente dos meus braços, das minhas pernas, da minha língua, do meu cérebro, estava também consciente dos meus pulmões, que imaginava como dois sacos de papel de seda que inchavam e desinchavam de cada vez que eu inspirava ou expirava o ar. Às vezes, expulsava palavras com o ar: bobina de cobre, por exemplo. Pronunciava dentro de mim, à altura do peito, a expressão bobina de cobre e sentia como atravessava a garganta, como humedecia ao deslizar pela língua (onde deixava um sabor a electricidade), como procurava um espaço entre a paliçada dos dentes para sair para o exterior, onde flutuava como o fumo dos cigarros, esbatendo-se até perder o sentido.

As palavras adquiriram algumas qualidades dos objectos sólidos, das coisas maciças. Podia agarrar numa palavra e dar-lhe voltas dentro da boca, como se fosse um rebuçado, antes de a engolir ou cuspir. Fazia a mim próprio perguntas loucas sobre a linguagem. Por que motivo, por exemplo, toda a gente comia lentilhas, quando o normal seria que os homens comessem lentilhos? Estou a falar de um mundo em que a fronteira entre o masculino e o feminino era brutal (talvez continue a sê-lo). Não é que não houvesse educação mista, é que não havia nada misto. Num mundo assim, era contraditório que elas comesses grão-de-bico em vez de grão-de-bica; que eles se sentassem em cadeiras em vez de cadeiros; que elas tivessem cabelo, ou pêlo, em vez de cabela, ou pêla; que eles usassem camisas, em vez de camisos...Estava tudo de pernas para o ar e foi isso que eu disse à minha mãe, com um fio de voz, quando me deu uma gema de ovo batida com açúcar e vinho doce, que era o reconstituinte da época. A minha mãe ouviu-me com perplexidade e pediu-me que não falasse a ninguém daquela reflexão, ela trataria de arranjar tudo. Outra promessa falsa, como a da sua imortalidade. A minha mãe não compôs a realidade, coisa que demorei muito tempo a perdoar-lhe. Quanto a mim, caí na obsessão de corrigir, por mim próprio, todas as frases mal usadas pelos outros. Se um dos meus irmãos dizia, por exemplo, que fizera uma ferimento numa perna, eu sussurrava perno, magoou-se num perno. Se era uma das minhas irmãs, fizera uma ferimenta numa perna. Compor a realidade era esgotante, mas alguém tinha de se ocupar disso.

Nem tudo, na linguagem, era assim tão imperfeito. Surpreendia-me, por exemplo, a capacidade das palavras para se encontrarem com os objectos que nomeavam. Assim, uma mesa não podia ser outra coisa senão uma mesa, a própria palavra o dizia, mesa. Ou cavalo. Dizíamos cavalo e víamos as crinas do animal, a sua cauda, os seus olhos inquietos...Teríamos porventura podido chamar cavalo à mesa e mesa ao cavalo? Impossível. Como teria sido a operação pela qual as palavras e as coisas, num tempo remoto, se haviam encontrado? Havia no mundo tantas palavras e tantas coisas, que poderia ter-se produzido com facilidade alguma confusão, algum casamento errado. Mas não encontrei nenhum. Cada coisa chamava-se como devia. Parecia-me inexplicável, por outro lado, que, ao se pronunciar a palavra gato aparecia um gato dentro da minha cabeça, ao dizer «ga» não aparecesse meio gato. Não disse nada à minha mãe para não a preocupar, pois pareceu-me que ouvia as minhas reflexões acerca das palavras com alguma angústia.


Juan José Millás (2009), O Mundo. Lisboa: Planeta: 55-56.