terça-feira, 7 de abril de 2015

Devia morrer-se de outra maneira


Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.

Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica ao mundo que vai transformar-se em nuvem hoje às 9 horas. Traje de passeio."

E, então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir à despedida. Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio. "Adeus! Adeus!" E pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento, numa lassidão de arrancar raízes ... (primeiro, os olhos...em seguida, os lábios...depois os cabelos...) a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se em fumo...tão leve...tão subtil...tão pólen...como aquela nuvem além (vêem?) - nesta tarde de Outono ainda tocada por um vento de lábios azuis....

José Gomes Ferreira






segunda-feira, 7 de abril de 2014

Quando olho para os sapatos das pessoas

Acontece, muitas vezes, que quando olho para os sapatos das pessoas, (quase) imediatamente os imagino espalhados pelo quarto da pessoa que os calça, ao lado da cama ou do sofá-cama (há pessoas que têm ar de quem dorme num sofá-cama). A visão de um par de sapatos ou de botas ou de ténis é, para mim, uma janela para a intimidade dos outros. Será assim para mais pessoas? Para mim, é. Nunca pensei muito na razão pela qual a visão dos sapatos nos pés das pessoas me faz avançar por ali fora e imaginar os sapatos espalhados, depois de um fim de dia, cansados, estafados (às vezes), tristes e sozinhos. Na realidade, tenho esse pensamento recorrentemente e muito especialmente se estou em algum sítio sentada com pessoas à volta, como, por exemplo, numa sala de espera de qualquer consulta. Venho para casa e imagino os outros a irem para casa e a descalçarem-se e a abandonarem os seus sapatos pelo chão de quarto. Não creio que lhes agradeçam; que agradeçam aos sapatos pelo facto de lhes terem ajudado a poupar o esforço dos pés. 

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Para partilhar umas palavras verdadeiras

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se envolam tantos anos.
David Mourão-Ferreira

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Não nos bastamos a nós mesmos

Depois de construir mais de cem ninhos de andorinhas, a Matilde e a miúda estrangeira que estava com ela, ficaram a conversar. Depois daquela dúvida inicial de responder com honestidade à pergunta "Como é que estás?», a Matilde mediu as consequências e decidiu dizer mesmo como estava. E avançar, com coragem, para além do «Está tudo bem.».  Duas horas mais tarde, arrependeu-se um pouco. Mas, na verdade, a vida dela não se basta a ela mesma e a Matilde precisa, com frequência, do olhar do outro para lhe dar existência, forma e um sentido de individualidade, para o bem e para o mal. Esta última, é a mesma frase que se ouve nos casamentos que se veem nas telas ou nos ecrãs. Da ficção para a realidade, é quem ouve e quem nos vê que nos dá forma. Até esse momento, somos apenas mais uma nuvem. Depois disso, somos um carneirinho, um senhor com nariz comprido, uma flor, um pedaço de algodão doce.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Monológo em duo menor

M:_ Estás triste?
S: _ Não.
M:_ Estás bem?
S: _ Sim.

terça-feira, 30 de julho de 2013

ninhos de andorinhas

A Matilde mudou de roupa e entrou na sala branca de luz azul. Tinha um corte do ombro ao cotovelo e não sabia como o tinha feito. Apesar de tudo, estava tranquila. No entanto, estava surpreendida. Não tinha noção de como tinha feito aquele corte. De dentro do corte saíam luzinhas amarelas, tipo pirilampos. Voltou a mudar de roupa. Perguntaram-lhe o que se passava. Não sabia. Aliás, sabia que tinha o corte de onde saíam estrelinhas mas não sabia como ele tinha aparecido e nem sabia o que fazer para o fechar. Disseram-lhe para esperar ali naquela sala. O primeiro impulso foi trocar de roupa, mas ali não tinha mais nada para vestir. Por isso, sentou-se. Via tudo a preto e branco, exceto as luzinhas douradas que continuavam a sair do seu ombro. Do ombro esquerdo. Ficou na sala à espera, tal como lhe tinham dito ou mandado (ela não tinha a certeza do tom que fora utilizado). Estava ali com uma rapariga que não falava português. Sentou-se na mesa que estava no centro da sala. A rapariga copiou-lhe os movimentos. Estavam as duas sentadas. A tarefa era construírem ninhos de andorinhas. A preto e branco como o resto. A Matilde tentou sempre comunicar com a rapariga. Ensinar-lhe. A rapariga não sabia o que eram andorinhas nem os seus ninhos. Explicou como pode, com gestos e com palavras inglesas, francesas e espanholas. A Matilde começou a construir um ninho, com a intenção de que a outra visse como se fazia e a imitasse. Funcionou. Juntavam pauzinhos e barro e construíram centenas de ninhos. Ninhos para passarinhos a preto e branco. Sem cor como aquele dia da Matilde que, sem saber como, tinha um corte tremendo no ombro esquerdo.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Acordar?

O mar era (estava?) amarelo e a Matilde nadava e flutuava. Leve. Sem peso nem medo. Numa das reviravoltas marítimas, olhou para baixo e viu um espelho. No espelho viu refletido o resultado de um Raio-X. Era ela, mas eram só os seus ossos que via na moldura do espelho. Parecia mesmo uma marioneta. Que divertido! Ainda a olhar para a imagem da sua estrutura no espelho viu passar por entre as costelas os peixinhos mais brilhantes e atrevidos. Tocou-lhes e a maioria fugiu. Ficou um. Deram as mãos, passearam e mascararam-se com algas. Matilde envolta de verde e amarelo. Conseguia respirar e sentia-se tão calma. A alma serena, o corpo ágil como dezenas de colares de pérolas em vez de ossos, cartilagens, articulações, líquidos. Mexia-se conta a conta. Transparente em amarelo e verde. Horas e horas. Abre as pálpebras e ouve o som do berbequim do vizinho que, até ao momento de chegar à superfície, lhe soava ao marido a passar uma sopa de algas e mar.