quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

não sei como é com os outros

Eu não sei como é com os outros, mas comigo, eu sei. É difícil, é muito difícil escrever uma tese de doutoramento. É um processo lento, cheio de avanços e recuos temperados pelas minhas profundas inseguranças e, ainda, marcado pelos serpenteantes percursos dos meus pensamentos. Os meus pensamentos não seguem a direito como acontece sobejas vezes com os carros orientados pelas preciosas dicas do GPS. Os meus pensamentos percorrem a vida dos outros, as preocupações (as minhas e as dos meus amigos e as dos meus pais e as da minha P.) seguem os raios intermitentes da luz do sol que ilumina a sala do meu T1 com kitchenette, através dos estores. Os meus pensamentos são desviados pelo som da sirene do carro da polícia, pelo alarme do carro de um vizinho, pela buzina de alguém que não consegue tirar o carro pois tem outro carro estacionado atrás dele, em segunda fila, e, principalmente, pela sirene das ambulâncias. Essas têm um poder fortíssimo sobre o vai e vem dos meus pensamentos. Penso: Antes estar aqui do que na ambulância, mas assim que penso isso mesmo, já me distraí e já lá vai o meu pensamento para longe das teclas do computador. Vai para dentro do hospital, para o lado do avesso das dores dos outros e das minhas. Por que não das minhas também?!

Escrever uma tese de doutoramento exige concentração - eu penso mesmo que à maneira de como se falava nos anos 80 - escrever uma tese de doutoramento é o CÚMULO DA CONCENTRAÇÃO:) Ora, para quem me conhece. Corrijo: Para quem me conhece agora aos 40 e a viver os 40 que vivo, concentração é dos truques mais difíceis de conseguir. A minha concentração está ao nível da cave, melhor, da garagem do prédio onde, infelizmente, o meu carro não dorme.

Escrever uma tese de doutoramento não tem nada, absolutamente, nada a ver com a nossa inteligência (seja isso o que for). Escrever uma tese de doutoramento é proporcional à nossa capacidade de resistência. Ao género da que têm os maratonistas. E eu, pelos vistos, sou mais um desses, umas dessas. Eu sou uma maratonista com paragens frequentes na box para rebastecer o oxigénio, a esperança, a energia e, acima de tudo, a persistência.

Eu não sei como é com os outros, mas comigo e para mim é difícil. E estou desejando o dia em que tudo isto termina. Para poder recomeçar a viver sem as costas doridas das horas sentada ao computador, para poder olhar a vida sem este peso que me imponho. Sim, eu tenho responsabilidade neste peso que me imponho; mas na verdade não sei fazer de outro modo. Provavelmente, os outros conseguem, mas eu não. Não sei como é com os outros, mas comigo não é fácil. Se calhar é porque viver comigo não é fácil. Penso muito.

Eu não sei como é com os outros, mas comigo é difícil...:) mas não se preocupem, eu posso não ser mais nada, mas sou uma resistente. Até já tenho a boina e o penteado à la mode de la résistance ou de la résistance à la mode:)!

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Já não há surpresas

A vida que se tem, raramente é aquela que se queria ter. As razões podem ser diversas. Pode suceder que não se tenha a capacidade de apreciar o que se tem. Pode acontecer que se seja um insatisfeito eterno. Pode suceder que não se tenha a capacidade de agir e pensar. Pode acontecer que seja mesmo verdade aquilo que se sente: a vida que se tem não é aquela que se deveria ter.

Isto disse-me a Matilde no outro dia. Estava triste, ela. Eu já não sei o que lhe dizer; muitas vezes fico em silêncio, apenas a ouvi-la falar, a limpar-lhe as lágrimas ou a reduzir o som dos gritos que lhe saem dos olhos. Ela até tem razão, a vida tem sido tão cheia de surpresas (e não das supreendentemente agradáveis, mas das outras: do outro tipo de surpresas, das desagradáveis) que a Matilde sente-se com pouca força para as digerir. Durante uns tempos consegue, mas durante outros, não. E não sabe como ter a vida que queria ter.

Ela disse-me isto e saiu da sala.

Virou costas e foi mudar de roupa. Muda de roupa muitas vezes. Acho que o faz porque isso lhe acompanha o ritmo do seu pensamento. E o seu pensamento é rápido e, com frequência, confuso. Ela tenta, eu já a vi muitas vezes tentar, sentir-se menos confusa e tentar gostar da vida que tem: com supresas surpreendentemente desastrosas e tudo o mais. Mas quase nunca ela consegue. Não se sente bem.

Sente-se sozinha e coloca nos lábios instáveis as palavras que ouviu no outro dia no cinema: _Chego a casa e está lá tudo como deixei: a chávena do café por lavar, o mesmo cd na aparelhagem, a mesma dobra no edredon – a dobra que ficou quando de manhã tentei fazer a cama - a tampa da sanita para baixo, a tampa da pasta dentífrica no sítio, os sacos da reciclagem nem mais cheios nem mais vazios, o mesmo perfume no ar, as botas como as descalço. Tudo espelhamente igual ao momento no qual saí de casa. Saio e regresso sempre para o mesmo cenário. Acho que é isso também o que me faz mal: a ausência de surpresas surpreendentemente agradáveis. O mesmo do mesmo não é bom quando à partida o mesmo não está bom. Fazem-me falta surpresas, das do tipo supreendementemente boas.

Disse isto e regressou ao quarto. Acho que foi outra vez mudar de roupa.
Sim, P., a imortalidade seria um enfado; mas isto de saber que se nasce para morrer - no sentido em que se eu nunca tivesse nascido, nunca morreria - também é um paradoxo brutal.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Ao jeito de uma máxima

Viver mata e é por essa razão que o ser humano não é imortal.
Pois se a vida não matasse, nós seriamos de certeza imortais.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Ema e as suas oito vidas

Dizem que os gatos têm sete vidas. Pois bem, a Ema já conta com mais no seu curriculum. Tem trinta e cinco anos, e já viveu oito. Ela é muito despachada. Acho que isso tem muito a ver com o modo elegante como vive cada uma dessas vidas – sim, as oito vidas ocorrem-lhe em simultâneo e por isso ela tem de as viver ao mesmo tempo (às vezes, com poucos segundos para respirar entre cada uma delas). Na minha opinião, a Ema é uma atleta de alta competição: uma malabarista de alta competição que, recorrendo a manobras diversas, mantém todas as peças no ar: objectos em fogo, pedaços de madeira, pinos de bowling, … – todas as oito vidas - quero eu dizer – no ar. São manobras, mas não são truques naquele sentido sujo da palavra. (Sei que o malabarismo não é considerado um desporto de alta competição mas eu sempre achei que deveria ser.) A elegância da Ema, às vezes, só se esvai quando lhe sobe o coração à boca e vemos formar nos seus lábios os sons de palavras que eu, por pudor, não revelo. Mas confirmo que é a sua elegância de vida – aquela que ela transporta na altura do seu corpo e da sua alma - que a faz conseguir gerir as vidas todas que vive. Não tem tempo para esperar, como ela diz, por isso tem de seleccionar com rigor. Não tem tempo para gente que não se decide. Não tem tempo para gente que não sabe lutar pelo que quer. Não tem tempo para esperar. A esperar, só se for pelo gato aquele que, entretanto, já tem menos vidas que ela.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

por hoje, só uma música...:) Mas uma música linda.

Esta música - Autumn Leaves - é tocada e cantada por Eva Cassidy que também morreu jovem. Tinha 33 anos. Este dado é mais uma pista que me leva a acreditar (cada vez mais) de que aqueles que saem de cena mais cedo, são muitas vezes os mais talentosos. Já nos mostraram como são lindos e provavelmente são tão lindos que não poderiam ficar em cena como nós ainda continuamos.



segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

saudade(s)

A saudade é um sentimento muito português. Dizem. Acho que não acredito. Acho que é um sentimento semeado por todos os pequenos universos que povoam o planeta Terra. A saudade é um sentimento duro. Não é como o amor, por exemplo, que é molinho, fofinho e quente. A saudade é dura e fria. Eu tenho muitas saudades. Principalmente de algumas pessoas e tenho acima de tudo saudades dos bons momentos. Não quero regressar ao passado, mas gostava de repetir alguns momentos. Talvez para os conseguir viver ainda mais intensamente do que na altura vivi, porque só agora – com a distância elástica do tempo – me apercebo como foram felizes esses momentos e como o meu coração batia ao ritmo das ondas quando a maré está baixa e o céu azul: compassado, tranquilo, ligeiro. Tenho saudades de quando estava apaixonada e feliz. Tenho saudades dos fins de tarde nos dias de férias em que, sem saber como, a conversa fluia sempre e sempre. Tenho até saudades da cumplicidade que se sentia nos silêncios. Tenho saudades de te telefonar e ouvir «até já». Tenho saudades de quando te telefonava para falar sobre mim e para dizer que «às oito estou em casa!». Tenho saudades de quando me fazias rir. Agora que vejo, tenho saudades de rir. Tenho saudades dos jantares e acima de tudo das conversas. Tenho saudade da cumplicidade. Tenho saudades do amor. Tenho saudades da ajuda e do carinho que recebia. Tenho saudades do amor que dava. Tenho saudades de dormir abraçada a ti. Tenho saudades principalmente quando os dias chegam ao fim, quando as horas se transformam em minutos longos, do tamanho do mundo, e passam devagar, devagar como a mudança da cor das folhas das árvores. Tenho saudades, principalmente, quando me lembro. Tenho tantas saudades que nem as consigo gerir com senso. Fica tudo enrolado, turvo. A saudade não é portuguesa nem sequer é do mundo. A saudade agora é minha. Segundo ouço, tanto se diz «tenho saudade» como «tenho saudades». A segunda deve indicar que a saudade é mais do que uma. Por isso, eu digo: tenho saudades. Muitas.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Para sempre

Tal como no romance (lindo, magnífico, comovente) de Vergílio Ferreira, a personagem recorda - no final da sua vida - o seu passado e, curiosamente, o seu futuro, também eu hoje (mesmo com a memória desgraçada que tenho) decidi recuar ao dia 4 de Feveveiro de 1995: O dia que ficará para sempre marcado no meu sangue.

Acordei, tomei banho, vesti-me, comi e saí para ir dar um exame. Apesar de ser sábado, havia exame. Havia exame, mas não havia telemóveis como hoje em dia. Eu, pelo menos, não tinha um. Estava a meio do exame, no anfiteatro e uma funcionária vem dizer-me que me tinham telefonado. Os meus pais tinham-me telefonado ou o Ricardo tinha-me telefonado. Não me lembro. Também por uma razão que não recordo, não telefonei de volta a partir da escola, fui a uma cabine telefónica que está no parque de estacionamento da universidade. Aí telefonei para o Ricardo (se calhar, a chamada tinha sido mesmo dele).

A voz que ouvi estava calma. Disse-me que a minha irmã estava no hospital e que eu deveria ir para Beja. O dia estava lindo e frio. A voz ao telefone não me disse mais nada. Assim que desliguei o telefone, pensei que a Marta tinha tido um acidente de mota. Assim que desliguei o telefone, senti o negro dentro de mim. Mas afastei-o: ela só tinha tido um acidente de mota, provavelmente, uma perna partida, um braço partido.

Regressei ao edifífio da escola a tremer mas não pelo frio. Fiquei a tremer durante muito tempo. Deram-me logo ali um calmante porque me acharam muito nervosa. Eu não queria: dizia que tinha sido apenas um acidente de mota. Mas não sentia que tinha sido apenas um acidente de mota. Sentia mais, mas não queria sentir mais.

Saí da universidade, fui a pé para a estação do comboio (o comboio está muitas vezes presente na minha vida), esperei pelo comboio, entrei no comboio, saí em Tavira. Fui a pé até casa do Ricardo. Vi caras calmas. Pensei que o que sentia estava provavelmente errado. Se calhar foi mesmo só uma perna partida.

O Ricardo disse que me levava a Beja. Antes de entrar no carro, a mãe do Ricardo fez-me uma festa na cara. Aí tive a certeza que o que sentia estava cada vez mais certo. Aquela festa na cara tinha uma mensagem.

Entrámos no carro. Estava um dia lindo, sol e frio. Lembro-me que parámos para comer algures para lá de Mértola. Não me lembro do que conversámos na viagem, mas não conversámos nada sobre a Marta. O Ricardo já sabia (penso eu) e não devia querer dar-me pistas.

Chegámos ao hospital de Beja. Entrei. O meu nome é Rita e venho visitar a minha irmã. Como se chama? Chama-se Marta. Qual é o piso onde está e qual é o número do quarto? Silêncio. O negro crescia dentro de mim. Silêncio. Vá aí para essa sala à direita que a médica vai falar consigo. Fui. O Ricardo estava comigo. A médica entrou. A Marta morreu. Eu desmaiei. Quando acordei estava noutro sítio - para sempre - num sítio onde eu tremia; até ouvia o som dos meus dentes a baterem. Para sempre fiquei outra. Para sempre perdi a minha irmã. Para sempre terei saudades dela. Para sempre a minha irmã ficará jovem. Para sempre, a minha irmã não vai sofrer mais. Para sempre, eu fiquei diferente. Para sempre, a minha irmã existirá.

Por tudo isto, tal como o protagonista do livro de Vergílio Ferreira, hoje recordo o meu passado e até o meu futuro pois tu estiveste/estás/estarás para sempre na minha vida.

Amo-te, Marta.
Sinto que estarás bem. Para sempre.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

os aniversários

Tal como há quem veja o copo sempre meio vazio também há quem o veja sempre meio cheio. Isso já todos sabemos e frequentemente ouvimos. Não estou a dar novidade nenhuma. E também todos nós conhecemos pessoas que optam por uma ou por outra perspectiva.

O mesmo sucede com os aniversários, ou melhor, com as celebrações dos aniversários. Há quem considere que o aniversário marca o segundo em que se celebram os dias e os momentos que se viveram até ali e há quem considere que o aniversário marca a certeza de um ano a menos para o fim. Aquele fim que é garantido – tal como se ouve na publicidade: aqui vende-se ao preço mínimo garantido. Não há preço mais mínimo do que aquele - não há outro fim, para nós, que não o garantido. Há quem viva o dia de aniversário como se fosse um dos dias mais tristes e miseráveis do ano. Há quem viva o dia de aniversário como se fosse uma conquista dos dias que já ganhou. Eu até que percebo as duas posições. E a minha opinião vacila e até poderia dizer: Acho que tem dias (como diz a senhora que trabalha na pastelaria ao lado da minha casa). Tem dias em que os dias têm uma conta decrescente, tem dias em que o cálculo é crescente (a meu favor, evidentemente). Mas na maioria deles (dos dias) acho que a celebração de um aniversário é como se disséssemos ao universo: estes já não mos tiras. Estes já são meus, já os vivi e estou muito feliz por isso. Diria, até, estou muito orgulhosa disso. Daí que tenho de tirar o melhor de cada dia. Tirar que é como quem diz o oposto: dar. Tenho de dar o melhor todos os dias. Não falo de dar o meu melhor no sentido mais corriqueiro e usado da expressão: algo como «tenho de ser e agir no máximo das minhas potencialidades todos os dias e a todas as horas». Não falo nesses termos porque isso não é realista. O máximo das minhas potencialidades tem variáveis incontroláveis por isso não pode existir essa coisa de dar o meu melhor. Quando falo em dar, refiro-me literalmente a dar. A dar o meu tempo e a minha ajuda a quem precisa. E dar não é fácil, nem é para todos. São poucos os que têm a capacidade de ser dar aos outros e à vida. Só o faz quem não tem medo, ou seja, quem tem a coragem de sofrer com os outros. Dar é acreditar que pelo menos isso já não nos tiram. Como o sinto quase todos os meus aniversários.