Querida filha,
Escrevo-te hoje, na véspera do dia em que te casarás, para te dizer aquilo que sinto. Estou em casa, naquela que é ainda hoje a tua casa, mas que a partir de amanhã será apenas a casa dos teus pais. A casa está fria e cada vez maior. Quando quase todos à minha volta se queixam de como as suas casas estão cada vez mais pequenas, que nelas já não cabe nem mais um alfinete, na minha (na ainda nossa) casa, é o contrário. Nem mesmo todos os livros do mundo a conseguem encher nem a tornam quente como ela já foi em tempos. Aqui no meio da cidade, tão longe do sítio onde nasci, é cada vez mais difícil respirar, por isso fico em casa, no quarto, naquele quarto que já foi o da tua irmã e que agora é um escritório cheio de papelada e um computador. No entanto, é aqui que me sinto bem; aqui ainda consigo pensar mesmo quando o comboio passa e a gatinha mia forte em jeito de resposta ao longo assobio que nasce na estação lá em baixo. É neste quarto, hoje espaço de arquivo de papéis e de emoções, que faço a despedida de ti. Tem de ser uma despedida lenta que vá crescendo em mim e que eu vou aos poucos dominando. Isto porque, como sabes, detesto despedidas. Provavelmente uma reacção consciente ao dia em que os meus pais foram para Angola e me deixaram ao cuidado da tia, daquela tia que vivia na outra margem. Eles foram e eu fiquei. Tal como tu te vais embora amanhã e eu fico. Lembro-me desse dia como se fosse hoje. Ainda nem estava na escola, ainda nem sabia o alfabeto, mas já um turbilhão de palavras me ocupava a cabeça. Claro que eram palavras de menina, palavras que se alinhavam aos trambolhões na minha cabeça como os puzzles que eu tentava fazer no chão da loja dos avós - «por que se vão embora? Por que não posso ir com vocês? Por que não me levas contigo, mãe? Por que tenho de ficar aqui?» onde à mesa estou proibida de falar e conversar como eu sempre gostei. Eu sempre gostei de conversar e como sabes converso por tudo e por nada, foi com o meu pai que aprendi a fazê-lo. Foi o teu avô quem mo ensinou, no dia em que a minha mãe me pôs de castigo, fechada no quarto da costura, por eu ter partido a terrina da sopa, com a sopa ainda lá dentro. Certamente já ouviste esta história centenas de vezes, mas foi mesmo nesse dia que eu aprendi, sem o saber, claro, o que era a imaginação e a força de dar voltas à vida quando a vida no-las troca. Conseguindo enganar a minha mãe, o meu pai passou aquela tarde comigo, também de castigo, pensava eu, sem perceber porquê, a contar-me histórias: histórias de quando era menino e ia de bicicleta à ribeira nos dias quentes de Verão, histórias de quando acordava de madrugada para ir à padaria do irmão sentir o cheiro do pão quente acabadinho de fazer, histórias e mais histórias. Foi nesse dia que percebi o poder libertador das palavras pois à medida que da boca do meu pai saiam palavras e palavras, as paredes daquele quarto de costura destruíam-se e eu voava dali para fora. Com aquelas palavras, vieram outras e nasceu a minha paixão por tudo aquilo que é composto por palavras: as conversas, as vidas, as memórias e as histórias. Amanhã, quando casares, abres mais um caminho mas, se quiseres e me deixares, eu estarei sempre lá, pronta para conversar quando precisares de mim. Sei que não gostas de telefones por isso te escrevo hoje, mas fica com a certeza que com fios ou sem fios, as tuas palavras (e o teu mundo) farão sempre parte das minhas palavras e do meu mundo.
Mãe
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