quarta-feira, 2 de novembro de 2011
Como viver num mundo de redondos quando não se é redondo
A Ema nasceu redonda, redondinha, como todas as outras pedras que viviam com ela à beira do riacho. Ela era uma pedrinha feliz e nunca questionou o valor da sua presença quando estava com o resto da pedraria: na escola dava-se bem com os colegas, tinha amigos; não muitos, mas tinha com certeza bons amigos; pertencia a uma família toda redonda e tudo estava redondamente bem. Durante muitos anos foi assim. Ema manteve-se igual a todos os outros, mas com o passar dos anos, a Ema foi vendo a sua redondice, ganhar formas rectas e angulosas, até chegar ao ponto em que um dia acordou e estava totalmente transformada num cubo, de frente, de trás e de lado, estava completamente quadrada. Já não rebolava; agora esforçava-se, muito, para colocar primeiro um dos lados no chão, ganhar impulso, colocar outro lado no chão, ganhar novamente impulso para colocar outro lado no chão, ad infinitum. Não era fácil para quem estava habituada a rebolar pelos caminhos, aprender a ter força suficiente para impulsionar o corpo que agora era um cubo. Não haveria grande mal em ser uma pedra quadrada ou uma pedra cubista se não fosse a realidade de todos à sua volta serem redondos e redondinhos. Quando e como começou a ocorrer esta metamorfose, a Ema não sabe e parece que ninguém na pedraria tem a resposta para o mistério que se materializou numa diferença; mas o que é certo – tão certo como o facto de o sol nascer todos os dias – é que essa diferença tornava muito difícil, senão mesmo impossível, que a Ema encaixasse no puzzle que era a pedraria. Agora era e acima de tudo sentia-se uma peça fora do puzzle. Durante algum tempo, disfarçou (inclusivamente para si mesma) a realidade da sua ausência de redondice. Mascarava a sua rectilinice com panos que formavam ondas curvas e cosia ao seu corpo de pedra almofadinhas redondinhas. Ela fez quase tudo para poder continuar a encaixar no puzzle e durante algum tempo essa estratégia funcionou. Funcionou mesmo, sem deslizes, sem tropeços, nem suspeições. Se perguntassem na pedraria se havia entre todas aquelas pedras alguém com forma de cubo, todas as pedrinhas diriam com absoluta certeza que NÃO: «Aqui não há cubos, nem mesmo quadrados que é o mesmo que dizer – um cubo visto de lado – nem pensar!». No entanto, tanto esforço para ser uma das peças perfeitas do puzzle resultou num desgaste profundo da estrutura da Ema e agora para além de rectas e ângulos, a sua cor também já era diferente e começava a ser muito difícil parecer que era igual aos outros. Todos na pedraria eram brancos ou negros (o que dificultava imenso a actividade de montar o puzzle da pedraria), e a Ema estava a ficar cinzenta. Cinzenta como os dias de chuva, mas não se sentia triste, sentia apenas que já não pertencia e essa certeza vinha de fora para dentro, pois era acima de tudo no contacto com as outras pedrinhas que ela percebia que já não encaixava de todo no puzzle. Uma das estratégias foi, então, continuar a sorrir para que pelo menos a sua boca tivesse forma de uma meia-lua, meia-redonda, sorria o mais que podia tentando fazer com que a distância entre os cantos da boca e as orelhas fosse a menor possível. Outra foi manter sempre os olhos muito abertos pois assim eles eram mais redondos. Outra foi continuar a coser almofadinhas a si mesma. Outra foi manter-se sossegada a ver se ninguém dava pela sua diferente presença. Mas progressivamente já nada disfarçava a sua cubice. Nem mesmo Ema conseguia disfarçar para si mesma que não era igual ao que era nem igual às outras pedras e pedrinhas. Então, foi a partir de aí que ela começou verdadeiramente a sentir-se mal e profundamente triste. Já não encaixava. Colocando de lado (em cada um dos seus quatro lados, lá está), toda e qualquer hipótese, mesmo que remota, de autocomiseração, Ema decidiu, após longos dias, com longas dores de estômago, mudar de pedraria. Essa era a única solução possível, já que a diferença lhe causava muita solidão. Solidão por dentro, não por fora, já que todos continuaram a falar muito bem com a Ema, a Ema é que tinha deixado de os entender pois estava diferente: não entendia o que diziam e principalmente não percebia o modo como viviam. Ela não era com certeza nem melhor nem pior do que os outros e outras que viviam na pedraria, mas não conseguia fazer-se entender e para não correr o risco de se transformar num velho cubo eremita com longas e brancas barbas que viveria a contemplar a vida dos outros, decidiu que o melhor era sair dali, ir para outra pedraria com a esperança de diminuir a solidão de dentro ao conseguir comunicar com alguém que fosse e pensasse como ela. Sei, que neste momento, a Ema ainda não encontrou aquele lugar onde se sentirá confortável na sua pele de cubo cinzento, mas como gosto da miúda, espero que o encontre em breve e coloque um ponto final à solidão de dentro.
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