domingo, 18 de março de 2012

«187. Um homem pensa nos seus interesses privados enquanto tem interesses e enquanto tem privacidade. Na ausência deles, movido pelo medo perante o vazio da sua existência, vira-se febrilmente para os interesses das outras pessoas. Para os proibir. Para os fustigar. Para esclarecer todos os loucos e esmagar todos os desviantes. Para encher os outros de favores ou persegui-los selvaticamente. Entre o zelota altruísta e o zelota assassino existe, é certo, uma diferença de ordem moral, mas não existe qualquer diferença de natureza. O assassínio e o autossacrifício são simplesmente as duas faces da mesma moeda. A dominação e a benevolência, a agressão e a dedicação, a repressão e a autorrepressão, a salvação das almas do que são diferentes de nós e o seu extermínio: não são pares de opostos, mas apenas diferentes expressões do vazio e da indignidade do homem. "A sua insuficiência para si próprio", nas palavras de Pascal (também ele contaminado).

188. "À falta de fazer alguma coisa com a sua vida vazia e estéril, cai nos braços dos outros ou atira-se-lhes à garganta." (Eric Hoffer, O Verdadeiro Crente).

189. E esse é o segredo da espantosa semelhança existente entre a irmã de caridade que trabalha dia e noite em benefício dos excluídos da sociedade e o bandido ideológico, o chefe de um serviço secreto, cuja vida se consagra inteiramente à eliminação dos rivais, dos estrangeiros ou dos inimigos da revolução: a modéstia de ambos. O seu interesse pelo que é mínimo. A sua hipocrisia, que se fareja à distância. A sua habituação à autocompaixão e a sua consequente irradiação de megawatts de sentimentos de culpa. A hostilidade que a irmã de caridade e o inquisidor compartilham perante tudo o que possa ser considerado "luxo" ou "autocomplacência". O missionário devotado e o organizador de purgas sangrentas têm ambos as mesmas maneiras delicadas. A mesma cortesia floreada. De ambos emana o mesmo odor de azedume indefinido. Têm o mesmo estilo ascético na indumentária. Os mesmos gostos (banais, sentimentais) em música e arte. E muito particularmente, o mesmo vocabulário ativo, caracterizado pelos floreados gastos, pela modéstia afetada, pelo cuidado com que evitam as formas mais cruas - toilettes em vez de casa de banho, ir-se em vez de morrer, solução em vez de extermínio, purga em vez de matança. E, é claro, salvação, redenção. Partilham a mesma divisa "Sou apenas um humilde instrumento." (Sou um "instrumento", logo existo; minto - ergo sum?!)

[...]

200. Por outras palavras: com a morte da alma, o cadáver ambulante transforma-se num ser totalmente público.»

Amos Oz ([1987] 2012). A Caixa Negra. Lisboa: Dom Quixote: 162-164.

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