segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Já não há surpresas

A vida que se tem, raramente é aquela que se queria ter. As razões podem ser diversas. Pode suceder que não se tenha a capacidade de apreciar o que se tem. Pode acontecer que se seja um insatisfeito eterno. Pode suceder que não se tenha a capacidade de agir e pensar. Pode acontecer que seja mesmo verdade aquilo que se sente: a vida que se tem não é aquela que se deveria ter.

Isto disse-me a Matilde no outro dia. Estava triste, ela. Eu já não sei o que lhe dizer; muitas vezes fico em silêncio, apenas a ouvi-la falar, a limpar-lhe as lágrimas ou a reduzir o som dos gritos que lhe saem dos olhos. Ela até tem razão, a vida tem sido tão cheia de surpresas (e não das supreendentemente agradáveis, mas das outras: do outro tipo de surpresas, das desagradáveis) que a Matilde sente-se com pouca força para as digerir. Durante uns tempos consegue, mas durante outros, não. E não sabe como ter a vida que queria ter.

Ela disse-me isto e saiu da sala.

Virou costas e foi mudar de roupa. Muda de roupa muitas vezes. Acho que o faz porque isso lhe acompanha o ritmo do seu pensamento. E o seu pensamento é rápido e, com frequência, confuso. Ela tenta, eu já a vi muitas vezes tentar, sentir-se menos confusa e tentar gostar da vida que tem: com supresas surpreendentemente desastrosas e tudo o mais. Mas quase nunca ela consegue. Não se sente bem.

Sente-se sozinha e coloca nos lábios instáveis as palavras que ouviu no outro dia no cinema: _Chego a casa e está lá tudo como deixei: a chávena do café por lavar, o mesmo cd na aparelhagem, a mesma dobra no edredon – a dobra que ficou quando de manhã tentei fazer a cama - a tampa da sanita para baixo, a tampa da pasta dentífrica no sítio, os sacos da reciclagem nem mais cheios nem mais vazios, o mesmo perfume no ar, as botas como as descalço. Tudo espelhamente igual ao momento no qual saí de casa. Saio e regresso sempre para o mesmo cenário. Acho que é isso também o que me faz mal: a ausência de surpresas surpreendentemente agradáveis. O mesmo do mesmo não é bom quando à partida o mesmo não está bom. Fazem-me falta surpresas, das do tipo supreendementemente boas.

Disse isto e regressou ao quarto. Acho que foi outra vez mudar de roupa.

1 comentário:

Vanity Chair disse...

http://www.youtube.com/watch?v=KTo7wKumolU