A casa – a primeira – um rés-do-chão em Benfica. Não tem memória dela mas tem a memória emprestada dos outros ilustrada por meia dúzia de fotografias. Acha que era pequena, apertada, bonita. Foi o espaço onde ela estava quando chegou a irmã e com a irmã vieram visitas e a maior caixa de smarties que alguma vez vira. Por isso, até não é verdade que não tenha memória dessa casa. Ela tem: a imagem da maior caixa de smarties do mundo. Uma caixa que lhe deram talvez por ser um presente, talvez para a deixar mais feliz, talvez para ela saber que apesar de a partir daquele momento os pais terem mais uma filha, ela continuaria a receber presentes: a maior caixa de smarties
do mundo. Não tem memória de quem lha deu, mas ainda hoje a agradece.
A segunda – na Rua das Camélias, nº6, 1º esquerdo – o nome sempre lhe pareceu romântico. Ela era a Dama das Camélias. Cresceu ali. Tinha o mundo inteiro ali: a escola (uma garagem) no topo da rua e as amigas no 1º direito e no r/c esquerdo. Cresceu ali. Foi feliz. Muito feliz (ainda ela não o soubesse naqueles momentos).
A terceira – no subúrbio – o verdadeiro. Ao lado da linha do comboio. A linha do comboio, o apito do comboio, o cheiro das linhas dos comboios que (não sabia ela então) a iriam acompanhar em mais três casas. Foi nesta casa número três que soprou as velas dos dezoito anos. Era uma casa longe. Longe da cidade grande onde a vida acontecia – pensava ela. Mas era uma casa – e era feliz (ela sabia).
A quarta – em Faro – com uma amiga e um emprego. Uma aventura. Um terraço. Um começo. Um quarto às vezes grande às vezes pequeno. Ela foi também feliz ali.
A quinta – um anexo de casa a poucos quilómetros de Tavira – não tem recordações; apenas toalhas turcas lhe vêm à cabeça e as longas caminhadas até à estação (mais uma vez os comboios e as linhas dos comboios) e da estação à Universidade e da Universidade à estação e da estação por um caminho de lama até casa, o anexo.
A sexta – um quarto na casa da amiga com quem partilhou a quarta casa – tinha um quarto e tinha a casa toda. Foi feliz.
A sétima – com a força do número sete e foi talvez por essa razão que esta foi a sua primeira casa. Dizem que o número sete indica o fim ou o início de um ciclo. Foi verdade. Esta casa foi um fim. Comprou-a, assinou a escritura: uma vitória e um virar de página. Não sabia na altura que iria ser tão violento o virar de página. Quinze dias depois dos selos, dos carimbos, das pessoas nas conservatórias, da azafama, o mundo caiu – o mundo dela caiu – o dos outros continuou. A continuação da vida dos outros foi uma das emoções que mais lhe ficou a remoer no estômago. A casa era ao lado da linha do comboio. Mais uma vez. Ela ouvia-os a todos, especialmente, o das duas da manhã – o das mercadorias. Não foi feliz naquela casa, não foi possível, não lhe permitiram, não conseguiu. A partir da sétima casa a vida dela ficou diferente. Ela ficou outra. Para sempre mais só.
A oitava – em Tunes – foi feliz. Obrigou-se a ter a noção de que era feliz. E houve muitos momentos em que foi mesmo feliz. A casa era bonita. Um closet. Uma piscina. Um pátio. Ao lado da linha do comboio. Saiu da oitava casa ao jeito de um jogo à la Houdini: uma fuga impossível.
A nona – em Faro, novamente, - se calhar a primeira de mais umas quantas. Espera ela. Aliás, ela está lá à espera. À espera da próxima casa onde vai ser muito feliz. Tem de ser, a infelicidade tem de ter data de validade como os iogurtes. Quer acreditar. Às vezes consegue mesmo acreditar.
5 comentários:
Tão bonito, Rita. Apesar de alguma infelicidade que se pressente. Mas a vida é isso também. E hão-de vir mais dias felizes. Porque também fazem parte da vida.
Beijinhos e saudades
Guida Varela
Sim, querida Guida, tal como eu disse (e acredito): a infelicidade tem prazo de validade!
Gosto muito de ti.
Beijos
bonito.
Celebras a vida e somas amigos, experiências e conquistas,
dando-lhes sempre algum significado e isso é louvável. è próprio de ti, não cruzas os braços perante as dificuldades, abres os braços e o coração a novas experiências, és lição de vida amiga! beijos??? muitos!!!
As casas são grandes, pequenas, cheias, vazias, com ruídos ou silêncios...
Em todas elas deixamos um pouco de nós e um pouco delas vem sempre connosco.
Irá chegar o dia em que sentada numa casa cheia de tudo, te lembrarás do "prazo de validade" e vais sorrir...
Adoro-te
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