sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

A(s) casa(s)

A casa – a primeira – um rés-do-chão em Benfica. Não tem memória dela mas tem a memória emprestada dos outros ilustrada por meia dúzia de fotografias. Acha que era pequena, apertada, bonita. Foi o espaço onde ela estava quando chegou a irmã e com a irmã vieram visitas e a maior caixa de smarties que alguma vez vira. Por isso, até não é verdade que não tenha memória dessa casa. Ela tem: a imagem da maior caixa de smarties do mundo. Uma caixa que lhe deram talvez por ser um presente, talvez para a deixar mais feliz, talvez para ela saber que apesar de a partir daquele momento os pais terem mais uma filha, ela continuaria a receber presentes: a maior caixa de smarties

do mundo. Não tem memória de quem lha deu, mas ainda hoje a agradece.

A segunda – na Rua das Camélias, nº6, 1º esquerdo – o nome sempre lhe pareceu romântico. Ela era a Dama das Camélias. Cresceu ali. Tinha o mundo inteiro ali: a escola (uma garagem) no topo da rua e as amigas no 1º direito e no r/c esquerdo. Cresceu ali. Foi feliz. Muito feliz (ainda ela não o soubesse naqueles momentos).

A terceira – no subúrbio – o verdadeiro. Ao lado da linha do comboio. A linha do comboio, o apito do comboio, o cheiro das linhas dos comboios que (não sabia ela então) a iriam acompanhar em mais três casas. Foi nesta casa número três que soprou as velas dos dezoito anos. Era uma casa longe. Longe da cidade grande onde a vida acontecia – pensava ela. Mas era uma casa – e era feliz (ela sabia).

A quarta – em Faro – com uma amiga e um emprego. Uma aventura. Um terraço. Um começo. Um quarto às vezes grande às vezes pequeno. Ela foi também feliz ali.

A quinta – um anexo de casa a poucos quilómetros de Tavira – não tem recordações; apenas toalhas turcas lhe vêm à cabeça e as longas caminhadas até à estação (mais uma vez os comboios e as linhas dos comboios) e da estação à Universidade e da Universidade à estação e da estação por um caminho de lama até casa, o anexo.

A sexta – um quarto na casa da amiga com quem partilhou a quarta casa – tinha um quarto e tinha a casa toda. Foi feliz.

A sétima – com a força do número sete e foi talvez por essa razão que esta foi a sua primeira casa. Dizem que o número sete indica o fim ou o início de um ciclo. Foi verdade. Esta casa foi um fim. Comprou-a, assinou a escritura: uma vitória e um virar de página. Não sabia na altura que iria ser tão violento o virar de página. Quinze dias depois dos selos, dos carimbos, das pessoas nas conservatórias, da azafama, o mundo caiu – o mundo dela caiu – o dos outros continuou. A continuação da vida dos outros foi uma das emoções que mais lhe ficou a remoer no estômago. A casa era ao lado da linha do comboio. Mais uma vez. Ela ouvia-os a todos, especialmente, o das duas da manhã – o das mercadorias. Não foi feliz naquela casa, não foi possível, não lhe permitiram, não conseguiu. A partir da sétima casa a vida dela ficou diferente. Ela ficou outra. Para sempre mais só.

A oitava – em Tunes – foi feliz. Obrigou-se a ter a noção de que era feliz. E houve muitos momentos em que foi mesmo feliz. A casa era bonita. Um closet. Uma piscina. Um pátio. Ao lado da linha do comboio. Saiu da oitava casa ao jeito de um jogo à la Houdini: uma fuga impossível.

A nona – em Faro, novamente, - se calhar a primeira de mais umas quantas. Espera ela. Aliás, ela está lá à espera. À espera da próxima casa onde vai ser muito feliz. Tem de ser, a infelicidade tem de ter data de validade como os iogurtes. Quer acreditar. Às vezes consegue mesmo acreditar.

5 comentários:

Anónimo disse...

Tão bonito, Rita. Apesar de alguma infelicidade que se pressente. Mas a vida é isso também. E hão-de vir mais dias felizes. Porque também fazem parte da vida.
Beijinhos e saudades
Guida Varela

Anónimo disse...

Sim, querida Guida, tal como eu disse (e acredito): a infelicidade tem prazo de validade!
Gosto muito de ti.
Beijos

Maria disse...

bonito.

sameirinho disse...

Celebras a vida e somas amigos, experiências e conquistas,
dando-lhes sempre algum significado e isso é louvável. è próprio de ti, não cruzas os braços perante as dificuldades, abres os braços e o coração a novas experiências, és lição de vida amiga! beijos??? muitos!!!

Vanity Chair disse...

As casas são grandes, pequenas, cheias, vazias, com ruídos ou silêncios...
Em todas elas deixamos um pouco de nós e um pouco delas vem sempre connosco.
Irá chegar o dia em que sentada numa casa cheia de tudo, te lembrarás do "prazo de validade" e vais sorrir...
Adoro-te